Cidadania nas favelas
Cidadania local
S.O.S\BRASIL
O governo federal anuncia programa de titulação de propriedade de moradias nas favelas. Só cabe aplaudir, naturalmente. Mas muitos cuidados terão que ser tomados, como resultado da experiência na execução de programas semelhantes no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras.
Em primeiro lugar a necessidade de criterioso e às vezes difícil cadastramento sócio-econômico dos moradores. Entre outras situações complicadas, serão encontradas moradias partilhadas por mais de uma família ou cujo acesso passa por posses de terceiros. Ao mesmo tempo, passar à indispensável elaboração de um plano diretor para definir acessos, com a delimitação física de cada posse e dos espaços públicos, fixação de limites do conglomerado e um ante-projeto de obras indispensáveis de urbanização e saneamento, ainda que sem previsão de prazo de execução. É a condição para evitar a expansão desordenada, conflitos internos entre vizinhos e agressões futuras aos direitos decorrentes da titulação. Empresas de consultoria de engenharia e escritórios de arquitetura devem ser mobilizados para esse trabalho, mais complexo do que pode parecer numa primeira abordagem.
A propriedade deve ser registrada em nome da mãe de família, a menos que exista vínculo matrimonial jurídico formal do casal que, nesse caso, terá a propriedade, em regime próprio. De fato, predominam, nessas ocupações irregulares, famílias regidas pela mãe. Ainda que presente, observa-se que a figura do pai de família é freqüentemente transitória, efêmera ou rotativa em muitas uniões "de fato". A mãe é a figura que define a identidade e uma possível estabilidade ou continuidade da família. Deve ser, portanto, a detentora do título de propriedade.
Para o caso de pessoas detentoras de posses múltiplas, para fins de locação, cada vez mais comum, a titulação deve ser onerosa. Com efeito, crescem os investimentos em construção de moradias, geralmente precárias, em favelas, para serem alugadas por seus posseiros, quase sempre com aluguéis abusivos em relação ao valor do investimento. Nem sempre residem no local. Não devem ser beneficiados por titulação gratuita da propriedade, devendo ser tratados como investidores imobiliários, capazes de pagar um valor significativo pela titulação, que neste caso seria obrigatória.
É comum a "venda de laje", ou seja, o direito de construir sobre a laje do teto da casa do posseiro que a vende. Essa faculdade deve ser regulada para coibir ampliações arriscadas, com acréscimos sucessivos de pavimentos sem garantia de estabilidade estrutural.
Não pode ser concedida a titulação para moradias em locais de risco de deslizamentos ou inundações, ou ainda de grave risco de degradação ambiental. Assim, impõe-se prever a relocação das famílias nesta situação para lugares seguros, no mesmo aglomerado ou favela, ou em moradias construídas especialmente para essa relocação em outros locais próximos. É quase sempre traumática a relocação de uma família para locais distantes do seu mercado de trabalho.
Há casos que exigirão apuração difícil mas necessária. Trata-se da posse obtida por violência, com a expulsão do posseiro anterior sob ameaça física, praticada por bandidos ou quadrilhas do tráfico de drogas, geralmente para instalar na moradia usurpada companheiras e filhos de traficantes. Será preciso apurar portanto a origem da posse atual para não beneficiar o autor da violência. Ainda assim, diante de situações "de fato", somente conceder o título de propriedade à mãe de família efetivamente residente, com prova testemunhal inequívoca, impedindo desta forma a sua expulsão futura pelo mesmo autor da violência, o que ocorre a cada conflito familiar nesse quadro.
Finalmente, há que regular de alguma forma o direito de transmissão de propriedade, envolvendo testemunhas qualificadas que assegurem não se tratar de venda forçada, sob ameaça, ocorrência infelizmente freqüente na venda de direitos de posse.
Considerando a integração anunciada e necessária das ações ministeriais, caberia ao novo Ministério das Cidades desenvolver programas que capacitem os estados e municípios brasileiros, conforme suas respectivas atribuições, a levar saneamento básico e urbanização a esses aglomerados urbanos irregulares. É a condição para que se reduzam enfermidades e sejam facilitados acessos decentes aos seus moradores, sem o que a titulação da propriedade terá pouco efeito prático. Ao Ministério da Justiça caberia promover a simplificação dos procedimentos legais e burocráticos para a titulação, com a redução de custas ou gratuidade dos registros imobiliários correspondentes.
Os efeitos sociais de um programa dessa natureza, se bem conduzido, serão notáveis.
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